87. O vilão interior

Engraçado como boa parte das conversas marcantes ou proveitosas surgem inesperadamente, sem um momento. Um destaque, uma piscadela,  uma oportunidade propícia e, de repente, sem qualquer planejamento, está-se ali discutindo o sentido de algo. E o problema do sentido é o que move nossa existência, por mais que não tratemos sobre, afinal, somente é na falta que se percebe a necessidade de algo. Não à toa, há quem diga que só pessoas em desajuste ou desconjuntadas falem de sentido, pois aqueles que efetivamente vivem não estão preocupados com a razão e o estado de ser das coisas.

Mas eu falava de conversas que se prolongam no tempo e um bom diálogo talvez seja algo próximo do infinito. O sujeito pisa e repisa os argumentos, os contra-argumentos, repensa o que disse, constrói novas palavras, supõe abordagens antes impensadas, de modo que sempre a conversa volta, impávida e fresca. Se não tão fresca, viva.

E foi numa dessas em que se falava dos papeis de aluno e de professor e em como essa relação, tão tensa, tão nobre, tão forte, como poucas na vida, são assumidas de lado a lado. Conte-se o milagre, mas se omita o nome do santo. Não é preciso identificar nada para chegar ao que quero dizer. Pois bem, enquanto falávamos sobre isto, pensávamos sobre intenções manipuladoras de parte a parte. O amigo demorava em encarar uma dura realidade, a que resisto tantas vezes: assim como somos sós no mundo, somos muitos e em diversos momentos, agimos sob a tirania da vilania.

É sempre difícil entender que eventualmente o erro, a ação imoral, o signo do ruim possa estar em nosso viver, em nosso fazer e não no do outro. E a esta constatação, longe de qualquer contentamento cínico, deve seguir a força e a vontade de tomá-la pela face, aprumar o rumo e pensar na importância de diminuir nosso ego, tão traiçoeiro.

Já se advertiu tantas vezes sobre o risco da vaidade e sobre seu caráter insidioso: manifesta-se em autopiedade, em nossa complacência com problemas que não são do outro, mas nossos, e mesmo em excessos de deferência e carinho para o que não deve ser. A vaidade pode ainda ser cruel quando nos impele à inércia, à tristeza, por achar que não há falha na fraqueza.

Reconhecer que o erro existe, compreendê-lo e partir a alguma forma de reparo não significa eliminar nossa natureza duvidosa. Pensar que podemos ser o pior é a maneira mais próxima e ligeira de nos aproximarmos do acerto.

Não há garantias, a vida é tirana. Assusta, mas é pura beleza, quando dá para ser.

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